quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Relatos: A dor que não tem nome (Eliane Trindade e Fernanda Cirenza)

Tiago, 21 anos, Camile, 18, Tarsila, 15, não tiveram chance de viver mais. Para as mães que ficam, é duro se confrontar com a realidade de que nem sempre o curso da história segue a ordem natural das coisas. Só a violência no Brasil provocou, em 2000, a morte prematura de mais de 17 mil jovens entre 15 e 24 anos, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. 'Perder um filho é como perder um pedaço de si', resume Claudia Ferrão, 30, psicóloga e psicanalista, do Day Care Center, entidade paulistana que atende pacientes de câncer e familiares. Os sintomas do luto são choque, depressão, revolta, impotência, sensação de fracasso, negação, raiva, culpa, angústia. 'É um processo de mudança em que a família vai ter de aprender a viver sem aquele que partiu', diz Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório do Luto, o Lelu, serviço de assistência psicológica mantido pela PUC de São Paulo. 'Quem vive a perda não volta a ser a pessoa que era antes, porque a morte altera valores e hábitos.' Apesar de o luto não ter tempo certo para terminar, há maneiras de superá-lo. 'É importante falar da morte, mesmo ela deixando uma marca profunda na vida de quem fica', diz Claudia. O enlutado, afirma Maria Helena, tem de usufruir de todo o apoio que puder. 'Deve contar com a família, com os amigos, com a religião, com qualquer tipo de apoio que ajude a pessoa a construir o significado da morte.' Ela ressalta que voltar à rotina também contribui na elaboração da perda. 'É fundamental entender que a vida continua.' A psicóloga Gláucia Rezende, que perdeu a filha Camile há mais de quatro anos, descobriu que não existe, em nenhum idioma, uma palavra para definir a morte de um filho. 'É uma dor que não tem nome, algo que não se espera.' Ela, Christine, mãe de Tiago, e Maria Lúcia, mãe de Tarsila, contam como enfrentam a vida sem seus meninos.

Gláucia Rezende Tavares, 47 anos, psicóloga e professora universitária. Mãe de duas filhas. Camile morreu aos 18 anos, em 21 de abril de 1998, em Belo Horizonte (MG)
'Minha filha morreu num acidente de carro. Nem pôde ser socorrida. Perder um filho subverte uma ordem cronológica e, por muito tempo, perguntei: 'Por que ela e não eu?'. Camile tinha ido a um churrasco numa fazenda perto de Belo Horizonte. Pegou carona no carro de um amigo, que levou outras duas meninas. Na volta, ele não conseguiu fazer uma curva. Dos quatro passageiros, só ela morreu. Não fui ao local do acidente, não fazia sentido. Esperei em casa a remoção do corpo até o IML (Instituto Médico Legal).
Meu marido é médico e pôde entrar no IML sem impedimentos para fazer o reconhecimento. Eu tive de brigar para acompanhá-lo, precisava viver aquele momento por mais duro que fosse. Precisava enfrentar a situação, ver o que a vida me oferecia. Não é a minha melhor recordação, mas vê-la morta foi a única chance de entender que ela estava realmente morta.
Foi um choque olhar seu corpo, que estava deformado, sujo de barro. Camile foi jogada para fora do carro e caiu num rio fétido, cheio de esgoto. Lembro que disse para o meu marido: 'Eduardo, essa é a nossa filha. Olha em que estado ficou a nossa criança'. Não pude tocá-la, o corpo estava infectado. Senti uma dor física, a garganta seca, um aperto em todo o corpo. É muito difícil lidar com essa realidade.
Depois de identificar o corpo, quis escolher a urna e separar a roupa que ela vestiu. Tomar essas providências foram importantes para eu não me iludir. Não quis correr o risco de não acreditar no que estava vivendo. Não quis ser poupada de nada, mesmo vendo ali a interrupção de muitos sonhos. Camile era jovem, tinha a vida pela frente.
Por uns três meses, vivi digerindo a morte, tentando entender a razão da tragédia, a interrupção da vida dessa maneira. A presença dos amigos e dos familiares me ajudou a seguir em frente. O fato de meu marido e eu não nos culparmos um ao outro pela morte também contribuiu para a elaboração do luto. Era um momento novo para todos nós. A companhia das pessoas, as palavras, o carinho... Conviver com crianças, com os filhos de amigos e familiares, também nos ajudou. Foi uma maneira de introduzir vida nas nossas vidas. A sobrinha-neta do Eduardo, que tinha uns 2 anos, foi um anjo para mim. Um dia, ela separou uma sacolinha com seus brinquedos mais preciosos e me deu. Aquilo me tocou profundamente, foi um gesto lindo, nunca vou esquecer.
Passados uns seis meses, fui fazer um trabalho com argila no Salão do Encontro, uma casa em Betim (MG), que organiza oficinas para pessoas carentes. Às vezes abrem as portas para gente como eu. Escolhi trabalhar com argila, porque era uma maneira metafórica de tocar o corpo que não pude abraçar. Representei essa vivência e me senti bem. Vivi uma semana com pessoas simples, sem erudição, mas com muita sabedoria de vida. Me senti acolhida, adquiri confiança de que a vida vale a pena.
Essa vivência e esse tempo serviram para eu compreender que tenho outras tarefas a cumprir. Uma das minhas providências foi montar um altar para meditação no quarto de Camile. É o nosso espaço, o nosso tempo com ela. Depois, Eduardo e eu inauguramos, em outubro de 1998, a API, Associação de Perdas Irreparáveis. É um grupo de pessoas que também estão vivendo perdas. De certa forma, fomos atrás da nossa turma. Lá, falamos de nossas perdas, de nossa dor, de nossos filhos que se foram, porque o passado não pode e não deve ser aniquilado.
Nosso grupo, além de estar se mobilizando em torno da prevenção de acidentes de trânsito, concluiu também o livro 'Do luto à luta' (Ed. Casa de Minas), lançado no ano passado. Nele, há o meu relato e também o de outras famílias. É gratificante ver que outras pessoas estão se fortalecendo com o nosso trabalho. Há uns anos, durante uma campanha nossa, resgatei o contato com o rapaz que dirigia o carro em que Camile estava. Soube que já tinha cometido quatro acidentes de trânsito, o de Camile foi o primeiro com morte. Aí pensei que teria participação se ele cometesse o quinto. Não abrimos processo contra ele, seria um desgaste a mais e não traria nossa filha de volta. Mas valeria a pena se ele tomasse consciência de que precisa ser mais cuidadoso ao dirigir um carro. No fim, ele aceitou se engajar em nossas campanhas. Percebi, então, que não era mais hora de culpá-lo.
A morte de Camile mudou duas coisas em mim. A primeira é que hoje penso que morrer não deve ser tão abominável, apesar de não ter nenhuma tranqüilidade para afirmar que um dia ainda vou encontrá-la. Ainda assim, a morte me parece menos terrível. Por outro lado, acho que tenho o compromisso de conduzir minha vida da melhor forma possível. Ivana, minha filha mais velha, que está com 24 anos, continua recebendo nossas orientações e recomendações de sempre. A primeira vez que ela nos disse que iria para um churrasco com amigos foi um desespero imenso. Era como rever um filme. Mas não podíamos impedi-la. Nossa função como pais é dar condições para que cada um de nossos filhos siga o seu próprio caminho.'
 
(Publicação da revista Marie Claire)
 
 

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