Hoje
quero esquecer educação, deseducação, abandono, desinteresse, incompetência,
mediocridade: quero falar da morte dos nossos afetos, de mais um amigo perdido.
Figura inesquecível, de quem não darei o nome, pois tantos mereceriam estar
aqui citados.
Quem o
conheceu sabe de quem falo. Quero nele homenagear os bons afetos que nos ajudam
a viver, e a crescer, especialmente aqueles que foram originais, inimitáveis
como este, e que nos fazem sentir quanto nos dedicamos a bobagens, sofremos por
tolices, nos desperdiçamos em futilidades (não que futilidades não sejam
necessárias, ou seríamos uma manada de bois obtusos ruminando o nada).
Mas
devíamos lhes reservar um espaço um pouco menor, e quem sabe o choque da morte,
da doença, do drama humano, em qualquer idade e lugar, nos fizesse rever alguns
conceitos, elaborar alguns valores – ainda que por poucas horas ou semanas.
Quando
morre alguém que a gente ama, seja amigo, amado, alguém da família, todo o
resto diminui, fica encoberto por um nevoeiro, tudo para. O mundo é pura sombra,
o planeta não gira, e se gira não interessa. Estamos petrificados no choque, na
dor, na inconformidade, às vezes na autocompaixão.
Conheci
um viúvo que diante da mulher morta gritava: “Como é que isso foi me
acontecer?”. Ele tinha sofrido esse último tipo de traição: a amante Morte
sempre vence. Tanto mais quanto mais não aceitarmos, com o tempo, que aqueles
que morrem apenas se transformam; enveredam por outra dimensão; vão crescer e
se aperfeiçoar mais; ou se escondem, fingem-se de mortos e nos espiam lá do seu
enigma, e nos cuidam, conforme a crença de cada um.
Quando
foi bom o amor, os mortos pedem que a gente não os perturbe, e que viva sem
muito desgosto e sem mórbido luto. Pedem que abaixemos o ruído das nossas
aflições, e que, porque os amamos, seja agora com um amor que não os algeme. Se
a onda natural de culpa for excessiva e tiver algum real fundamento, vamos nos
agarrar desesperadamente aos mortos – não para que nos ensinem a viver de novo,
mas como bandeiras escuras de isolamento e rancor.
Quando
estavam de bom humor, os deuses abriram as mãos e soltaram neste mundo os
oceanos e as sereias, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes,
as manadas, as revoadas – e, para atrapalhar, as pessoas. Que passaram a correr
meio desnorteadas atrás de coisas que nem sabem direito: a mulher mais
sedutora, o homem mais poderoso, ou coisa nenhuma. Tudo menos parar e pensar.
Enquanto isso a Morte revira seus grandes olhos de gato, termina de palitar os
dentes e prepara o bote: nós nunca estamos preparados.
Nem eu
que, como todos, perdi muitos afetos. Mas isso me ensinou a não acreditar
demais na morte nem desistir da esperança, que rebrilha entre o cascalho bruto.
A gente tem de aprender a enxergar, tem de crescer como, dizem as lendas,
crescem ainda nos silenciosos túmulos os cabelos de quem se foi (mas hoje a
gente é cremada, nem vermes nem longas cabeleiras).
A Morte,
amiga indesejada, vai colhendo alguns dos que mais amamos, e os esconde nas
suas largas mangas. Quando trabalhamos ou nos divertimos, ela passeia pelas
praças, sobe nos telhados mais altos, e aponta aqui e ali seu dedo ossudo:
este, este, esta, aquela. Às vezes vários num só golpe.
Ela é
natural, dizem; é inevitável, sabemos. Mas a gente não entende, não aprende,
não se conforma. Porque não se decifra esse enigma. Porque não somos bons
alunos nessa dura escola.